sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A Legalidade é uma questão de Poder, não de Justiça

A LEGALIDADE É UMA QUESTÃO DE PODER, NÃO DE JUSTIÇA

Durante os anos do Brasil Império, o caráter liberal da Constituição de 1824 se contrastava com a manutenção do sistema de produção escravista, baseado em um arcabouço jurídico de desqualificação do escravo como pessoa e sujeito possuidor de direitos. Apesar da omissão acerca da existência da escravidão por parte da Carta Magna, havia a possibilidade de se inferir, jurídica e legalmente, a sua legitimidade como organização socioeconômica do Brasil. Assim, com uma independência brasileira pautada na manutenção do “status quo” pelo qual o país era constituído, foi possível a instrumentalização do aparelho burocrático do Império para o benefício privado da aristocracia rural, a qual tinha seus poderes fortalecidos pela conservação da estrutura escravocrata.

Dessa forma, podemos confirmar a existência da distância prática entre a execução da lei e os princípios da justiça (aqui entendido como valores universais, que garantem a liberdade, a igualdade, a moralidade, a equidade, a dignidade humana, entre outros direitos naturais) – como acima apresentado, em que os direitos fundamentais foram legalmente, a determinado grupo, negados, pelo arbítrio daqueles que possuíam o poder político-econômico. Logo, apesar do fundamento conceitual do Direito ter como objetivo principal o cumprimento da justiça, nem sempre tal fim é alcançado, seja por falta de disposição política para cumpri-lo, seja pelo desejo de manter determinados privilégios.

Nesse sentido, enquanto uma seção de julgamento, com base na análise técnica das leis, necessita de imparcialidade por parte do juiz, ou seja, de desconsiderar as condições de classe, etnia ou gênero das partes envolvidas, as elaborações das leis são guiadas por aspectos essencialmente ideológicos (conjunto de ideias que objetivam fortalecer as estruturas de poder, ou mesmo fragilizá-las a fim de substitui-las por outras), apesar da orientação na filosofia de John Rawls pelo véu da ignorância (a qual demonstra que o indivíduo deveria ignorar, no momento de legislar, as suas predileções e suas circunstâncias pessoais). A legalidade, portanto, não pode ser entendida como prática da justiça, mas como tecnologia e como questão de poder.

Por esse ângulo, o Direito positivo, como institucionalização da norma, serve, dentro do poder disciplinar, como recurso para “adestramento” dos corpos, na medida que se constrói, pelo exercício da violência simbólica, indivíduos obedientes e desmobilizados frentes às estruturas de dominação, de repressão e de ordem social. Tal aspecto pode ser verificado ao contrastar o perfil social da maioria dos encarcerados (pobres, negros e periféricos) com o trajeto de impunidade que os grandes oligopólios do complexo agroindustrial são tratados, mesmo agindo antiteticamente. Vê-se, então, a aplicação de uma punição mais direcionada a um estereótipo de classe do que para a gravidade do crime cometido. Produz-se, portanto, o cerceamento da liberdade de determinados grupos oprimidos, em favorecimento da permanência de privilégios estabelecidos a partir da promiscuidade entre o público e o privado (patrimonialismo).

Ao passo que se observa a manipulação daquilo que se apresenta como legal, a fim de conservar o monopólio do poder e de atender aos objetivos arbitrários das elites político-econômicas, percebe-se a descontinuidade do compromisso do poder público em se utilizar do aparelho legislativo para o exercício dos princípios do Estado Democrático de Direito. Ao contrário do que é aplicado, o referido regime de governo se configura por meio da intersecção do acesso à justiça (garantido pela constituição Federal de 1988, como possibilidade de transformação social) e no entendimento de que a atuação estatal e de particulares deve pautar-se pelo respeito aos direitos fundamentais e à Constituição.

Diante disso, indaga-se: a quem o aparelhamento da violência tem favorecido? À Aristocracia político-econômica do Brasil. A quem o Estado tem servido pelas regras do Direito? A história tem apontado para uma resposta diferente do povo. O poder institucionaliza a verdade; a verdade tem suprimido o povo. Silenciados, mortos e amordaçados, porém militantes, subversivos e revolucionários, os Excluídos da História e os alvos da instrumentalização do Direito perpetuam suas lutas contrárias à arbitrariedade do Estado de Exceção. Assim, com tal postura de resistência, talvez, possa-se construir um futuro em que se ouça as “Marias, Mahins, Marielles e Malês”, como canta o samba-enredo da Mangueira.

Texto de Nicolas Gustavo - Coordenador em Gestão Colegiada no Projeto Filosofia em Tempos de Pandemia.

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