RUBEM ALVES
Colega
aposentado com todas as credenciais e titulações. Fazia tempo que a gente não
se via. Entrou no meu escritório sem bater e sem se anunciar. E nem disse
bom-dia. Foi direto ao assunto. "- Rubão, estou escrevendo um livro em que
conto o que aprendi através da minha vida. Mas eles dizem que o que escrevo não
serve. Não é científico. Rubão: o que é científico?" Havia um ar de
indignação e perplexidade na sua pergunta. Uma sabedoria de vida tinha de ser
calada: não era científica. As inquisições de hoje, não é mais a igreja que
faz.
Não sou
filósofo. Eles sabem disso e nem me convidam para seus simpósios eruditos. Se
me convidassem eu não iria. Faltam-me as características essenciais. Nietzsche,
bufão, fazendo caçoada, cita Stendhal sobre as características do filósofo:
" Para se ser um bom filósofo é preciso ser seco, claro e sem ilusões. Um
banqueiro que fez fortuna tem parte do caráter necessário para se fazer
descobertas em filosofia, isto é, para ver com clareza dentro daquilo que
é."
Não sou
filósofo porque não penso a partir de conceitos. Penso a partir de imagens. Meu
pensamento se nutre do sensual. Preciso ver. Imagens são brinquedos dos
sentidos. Com imagens eu construo estórias. E foi assim que, no preciso momento
em que meu colega formulou sua pergunta perplexa, chamadas por aquela pergunta
augusta, apareceram na minha cabeça imagens que me contaram uma estória:
"Era
uma vez uma aldeia às margens de um rio, rio imenso cujo lado de lá não se via,
as águas passavam sem parar, ora mansas, ora furiosas, rio que fascinava e dava
medo, muitos haviam morrido em suas águas misteriosas, e por medo e fascínio os
aldeões haviam construído altares às suas margens, neles o fogo estava sempre
aceso, e ao redor deles se ouviam as canções e os poemas que artistas haviam
composto sob o encantamento do rio sem fim.
O rio era
morada de muitos seres misteriosos. Alguns repentinamente saltavam de suas
águas, para logo depois mergulhar e desaparecer. Outros, deles só se viam os
dorsos que se mostravam na superfície das águas. E havia as sombras que podiam
ser vistas deslizando das profundezas, sem nunca subir à superfície.
Contava-se, nas conversas à roda do fogo, que havia monstros, dragões, sereias,
e iaras naquelas águas, sendo que alguns suspeitavam mesmo que o rio fosse
morada de deuses. E todos se perguntavam sobre os outros seres, nunca vistos,
de número indefinido, de formas impensadas, de movimentos desconhecidos, que
morariam nas profundezas escuras do rio.
Mas tudo
eram suposições. Os moradores da aldeiam viam de longe e suspeitavam - mas
nunca haviam conseguido capturar uma única criatura das que habitavam o rio:
todas as suas magias, encantações, filosofias e religiões haviam sido inúteis:
haviam produzido muitos livros mas não haviam conseguido capturar nenhuma das
criaturas do rio.
Assim foi
por gerações sem conta. Até que um dos aldeões pensou um objeto jamais pensado.
(O pensamento é uma coisa existindo na imaginação antes dela se tornar real. A
mente é útero. A imaginação a fecunda. Forma-se um feto: pensamento. Aí ele
nasce...). Ele imaginou um objeto para pegar as criaturas do rio. Pensou e fez.
Objeto estranho: uma porção de buracos amarrados por barbantes. Os buracos eram
para deixar passar o que não se desejava pegar: a água. Os barbantes eram
necessários para se pegar o que se deseja pegar: os peixes. Ele teceu uma rede.
Todos se
riram dele quando ele caminhou na direção do rio com a rede que tecera.
Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou. Armou a rede como pode e foi dormir.
No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada,
uma criatura do rio: um peixe dourado.
Foi aquele
alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham estado tentando pegar as criaturas do
rio com fórmulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de
feitiçaria. Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que sua rede apanhara
eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira. Outros ficaram alegres e
trataram de aprender a arte de fazer redes. Os tipos mais variados de redes
foram inventados. Redondas, compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas,
umas para serem lançadas, outras para ficarem à espera, outras para serem
arrastadas. Cada rede pegava um tipo diferente de peixe.
Os
pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes. Porque os peixes que
eles pescavam tinham poderes maravilhosos para diminuir o sofrimento e aumentar
o prazer. Havia peixes que se prestavam para ser comidos, para curar doenças,
para tirar a dor, para fazer voar, para fertilizar os campos e até mesmo para
matar. Sua arte de pescar lhes deu grande poder e prestígio e eles passaram a
ser muito respeitados e invejados.
Os
pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa confraria. Para se
pertencer à confraria era necessário que o postulante soubesse tecer redes e
que apresentasse, como prova de sua competência, um peixe pescado com as redes
que ele mesmo tecera.
Mas uma
coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes, pescar peixes e falar sobre
redes e peixes, os membros da confraria acabaram por esquecer a linguagem que
os habitantes da aldeia haviam falado sempre e ainda falavam. Puseram, no seu
lugar, uma linguagem apropriada às suas redes e os seus peixes, e que tinha de
ser falada por todos os seus membros, sob pena de expulsão.
A nova
linguagem recebeu o nome de ictiolalês ( do grego "ichthys" = peixe +
"lalia"= fala ). Mas, como bem disse Wittgenstein, alguns séculos
depois "os limites da minha linguagem denotam os limites do meu
mundo". O meu mundo é aquilo sobre o que posso falar. A linguagem
estabelece uma ontologia. Os membros da confraria, por força dos seus hábitos
de linguagem, passaram a pensar que somente era real aquilo sobre que eles
sabiam falar, isto é, aquilo que era pescado com redes e falado em ictiolalês.
Qualquer coisa que não fosse peixe, que não fosse apanhado com suas redes, que
não pudesse ser falado em ictiolalês, eles recusavam e diziam: "Não é
real".
Quando as
pessoas lhes falavam de nuvens eles diziam: " Com que rede esse peixe foi
pescado?" A pessoa respondia: "Não foi pescado, não é peixe."
Eles punham logo fim à conversa: "Não é real". O mesmo acontecia se
as pessoas lhes falavam de cores, cheiros, sentimentos, música, poesia, amor,
felicidade. Essas coisas, não há redes de barbante que as peguem. A fala era
rejeitada com o julgamento final: "Se não foi pescado no rio com rede
aprovada não é real".
As redes
usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito boas.
Os peixes
pescados pelos membros da confraria eram bons? Muito bons.
As redes
usadas pelos membros da confraria se prestavam para pescar tudo o que existia
no mundo? Não. Há muita coisa no mundo, muita coisa mesmo, que as redes dos
membros da confraria não conseguem pegar. São criaturas mais leves, que exigem
redes de outro tipo, mais sutis, mais delicadas. E, no entanto, são
absolutamente reais. Só que não nadam no rio.
Meu colega
aposentado com todas as credenciais e titulações: mostrou para os colegas um
sabiá que ele mesmo criara. Fez o sabiá cantar para eles e eles disseram:
"Não foi pego com as redes regulamentares; não é real; não sabemos o que é
um sabiá; não sabemos o que é o canto de um sabiá..."
Sua
pergunta está respondida, meu amigo: o que é científico?
Resposta: é
aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas.
Cientistas
são aqueles que pescam no grande rio... Mas há também os céus e as matas que se
enchem de cantos de sabiás... Lá as redes dos cientistas ficam sempre vazias.
FONTES:
ALVES, Rubem.
Entre a Ciência e Sapiência.