A LEGALIDADE É UMA QUESTÃO DE PODER, NÃO DE JUSTIÇA
Durante
os anos do Brasil Império, o caráter liberal da Constituição de 1824 se
contrastava com a manutenção do sistema de produção escravista, baseado em um
arcabouço jurídico de desqualificação do escravo como pessoa e sujeito
possuidor de direitos. Apesar da omissão acerca da existência da escravidão por
parte da Carta Magna, havia a possibilidade de se inferir, jurídica e legalmente,
a sua legitimidade como organização socioeconômica do Brasil. Assim, com uma
independência brasileira pautada na manutenção do “status quo” pelo qual o país
era constituído, foi possível a instrumentalização do aparelho burocrático do
Império para o benefício privado da aristocracia rural, a qual tinha seus
poderes fortalecidos pela conservação da estrutura escravocrata.
Dessa
forma, podemos confirmar a existência da distância prática entre a execução da
lei e os princípios da justiça (aqui entendido como valores universais, que
garantem a liberdade, a igualdade, a moralidade, a equidade, a dignidade
humana, entre outros direitos naturais) – como acima apresentado, em que os
direitos fundamentais foram legalmente, a determinado grupo, negados, pelo
arbítrio daqueles que possuíam o poder político-econômico. Logo, apesar
do fundamento conceitual do Direito ter como objetivo principal o cumprimento da
justiça, nem sempre tal fim é alcançado, seja por falta de disposição política
para cumpri-lo, seja pelo desejo de manter determinados privilégios.
Nesse
sentido, enquanto uma seção de julgamento, com base na análise técnica das
leis, necessita de imparcialidade por parte do juiz, ou seja, de desconsiderar
as condições de classe, etnia ou gênero das partes envolvidas, as elaborações
das leis são guiadas por aspectos essencialmente ideológicos (conjunto de
ideias que objetivam fortalecer as estruturas de poder, ou mesmo fragilizá-las
a fim de substitui-las por outras), apesar da orientação na filosofia de John
Rawls pelo véu da ignorância (a qual demonstra que o indivíduo deveria ignorar,
no momento de legislar, as suas predileções e suas circunstâncias pessoais). A
legalidade, portanto, não pode ser entendida como prática da justiça, mas como
tecnologia e como questão de poder.
Por
esse ângulo, o Direito positivo, como institucionalização da norma, serve,
dentro do poder disciplinar, como recurso para “adestramento” dos corpos, na
medida que se constrói, pelo exercício da violência simbólica, indivíduos obedientes
e desmobilizados frentes às estruturas de dominação, de repressão e de ordem
social. Tal aspecto pode ser verificado ao contrastar o perfil social da
maioria dos encarcerados (pobres, negros e periféricos) com o trajeto de
impunidade que os grandes oligopólios do complexo agroindustrial são tratados,
mesmo agindo antiteticamente. Vê-se, então, a aplicação de uma punição mais
direcionada a um estereótipo de classe do que para a gravidade do crime
cometido. Produz-se, portanto, o cerceamento da liberdade de determinados grupos
oprimidos, em favorecimento da permanência de privilégios estabelecidos a
partir da promiscuidade entre o público e o privado (patrimonialismo).
Ao
passo que se observa a manipulação daquilo que se apresenta como legal, a fim
de conservar o monopólio do poder e de atender aos objetivos arbitrários das
elites político-econômicas, percebe-se a descontinuidade do compromisso do poder
público em se utilizar do aparelho legislativo para o exercício dos princípios
do Estado Democrático de Direito. Ao contrário do que é aplicado, o referido regime
de governo se configura por meio da intersecção do acesso à justiça (garantido
pela constituição Federal de 1988, como possibilidade de transformação social)
e no entendimento de que a atuação estatal e de particulares deve pautar-se
pelo respeito aos direitos fundamentais e à Constituição.
Diante
disso, indaga-se: a quem o aparelhamento da violência tem favorecido? À
Aristocracia político-econômica do Brasil. A quem o Estado tem servido pelas
regras do Direito? A história tem apontado para uma resposta diferente do povo.
O poder institucionaliza a verdade; a verdade tem suprimido o povo. Silenciados,
mortos e amordaçados, porém militantes, subversivos e revolucionários, os
Excluídos da História e os alvos da instrumentalização do Direito perpetuam
suas lutas contrárias à arbitrariedade do Estado de Exceção. Assim, com tal
postura de resistência, talvez, possa-se construir um futuro em que se ouça as
“Marias, Mahins, Marielles e Malês”, como canta o samba-enredo da Mangueira.
Texto de Nicolas Gustavo - Coordenador em Gestão Colegiada no Projeto Filosofia em Tempos de Pandemia.