Como ressalta Giddens (1978:318-19), devemos
a Auguste Comte (1798-1857) os termos "positivismo" e
"sociologia" e, naturalmente, a idéia de que "o advento da
Sociologia deveria marcar o triunfo final do positivismo no pensamento
humano". Ele também nos lembra que coube a Émile Durkheim (1858-1917)
"ligar intimamente a estrutura lógica", estabelecida por Comte já em seus Cursos de
Filosofia Positiva, "ao funcionalismo moderno", ampliando a
concepção de que a Sociologia seria uma "ciência natural da
sociedade". Daí decorre, em larga escala, a importância dos dois em
qualquer exposição acerca do positivismo. Assim, esta primeira seção, dedicada
à tradição francesa, está baseada, por um lado, nas obras de Comte: Curso de Filosofia Positiva, escrito
entre 1830 e 1842 + ao qual, em trabalhos
posteriores, ele se referia substituindo o termo Curso por Sistema; Discurso sobre o Espírito Positivo, de
1844; e Discurso Preliminar sobre o
Conjunto do Positivismo, de 1848. Por outro lado, de Durkheim utilizo As Regras do Método Sociológico,
publicado originalmente em 1895, em especial os capítulos onde ele explicita e
discute sua concepção de "fato social" e as "regras" para
sua observação, que, no meu entendimento, são centrais para a melhor
compreensão do método sociológico. De forma adicional, utilizo também os
prefácios às duas primeiras edições do livro, onde ele defende o método das
críticas de então. Para tanto, foi frutífera a leitura de Aron (1982:297-75),
que fornece um valioso guia para o estudo daquela obra.
O positivismo Comteano
De modo geral,
considera-se que há, no positivismo Comteano, pelo menos, três temas básicos,
os quais servem de moldura para explicar o que Comte define como "a
verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva". O primeiro
está relacionado com a formulação de uma filosofia
da história, onde já se encontram os princípios do positivismo; em seguida,
aparecem a formulação e a classificação
das ciências, que, baseadas naqueles princípios, servem para estabelecer
uma hierarquia entre as ciências; e, finalmente, a sociologia positivista, quando ele desenvolve os elementos da
nova e definitiva ciência e advoga a reorganização da sociedade e das
instituições visando à restauração da ordem e à busca do progresso (cf.
Halfpenny, 1982:13-26).
Inicialmente, a filosofia da história, de
Comte, pode ser resumida na sua conhecida lei
dos três estágios, que correspondem às três fases distintas percorridas
pelo desenvolvimento do conhecimento e do pensamento ou espírito humano. Comte
acreditava ter descoberto "uma grande lei fundamental" a partir de
seus estudos sobre "o desenvolvimento total da inteligência humana em suas
diversas esferas de atividade". Assim, cada um dos três estágios de sua
lei tem características próprias e peculiares, até mesmo opostas entre si. Os
três estágios são os seguintes: (a) o teológico
ou fictício, que tem, como mostrarei
adiante, também três fases distintas; (b) o metafísico
ou abstrato, que corresponde
apenas a uma fase transitória entre o estágio anterior e o próximo; e (c) o positivo ou científico, o estágio definitivo da razão humana.
O primeiro deles, o teológico, é o estágio primitivo, "provisório e
preparatório", onde os fenômenos são explicados através da ação direta e
contínua de agentes sobrenaturais, como deuses e espíritos, a quem são
creditadas todas as anomalias; as observações dos fenômenos são em número
reduzido, o que faz com que a imaginação ocupe o papel mais relevante; as
especulações são dirigidas para a resolução de problemas insolúveis e inacessíveis;
nele, o espírito humano busca, enfim, a origem de todas as coisas, as causas
essenciais; e o homem imagina ter uma compreensão absoluta do mundo. O estágio teológico está dividido também em três
etapas principais: a mais remota, que corresponde ao fetichismo; a intermediária, ao politeísmo;
e a última, que é a fase de transição ao estágio metafísico, é chamada de monoteísmo.
O segundo estágio é o
metafísico. Nele, os fenômenos são
explicados por meio de forças ou entidades ocultas e abstratas, e não mais por
agentes sobrenaturais; e o abstrato ocupa o lugar do concreto, e a
argumentação, o da especulação. Essa fase é apenas transitória. Assim, o
espírito humano chega ao terceiro, último e definitivo estágio, o positivo, onde os fenômenos são explicados
a partir de leis demonstradas experimentalmente, o que faz com que se renuncie
à busca das explicações absolutas, da origem e da finalidade do mundo e das
causas primeiras dos fenômenos. Aqui, já são introduzidas duas noções caras ao
sistema positivo de Comte, isto é, a observação e a experimentação, próprias do
conhecimento científico, que subordinam a imaginação e a especulação até então
predominantes.
Para Comte, então,
todas as formas de conhecimento passaram pelos dois primeiros estágios e vieram
a se constituir definitivamente no último. Ademais, as sociedades evoluem de
acordo com aquela "grande lei fundamental", assim como os indivíduos.
Comte refere-se, por exemplo, à infância como nosso estágio teológico; à
juventude como o metafísico; e à idade adulta como o físico.
Mas, a esta altura é bom indagar em que
sentido Comte usa a expressão filosofia
positiva. Pelo que se apreende até
aqui, pode-se dizer o seguinte: Comte adota o termo filosofia para designar o sistema geral do conhecimento humano, e
usa o adjetivo positiva para
contrapor + segundo algumas palavras usadas por ele próprio + o real à imaginação, o útil ao inútil, a ordem à
insegurança, o preciso ao vago, o relativo ao absoluto, a observação e a
experimentação à especulação.
Ademais, para Comte, o caráter fundamental da
filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja
descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o
objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente
inacessíveis e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam elas primeiras, sejam
finais. [...] Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de
sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de
sucessão e de similitude ([Curso de
Filosofia Positiva, 1830-42] 1983:5).
Como se vê, apesar de
ressaltar que o objetivo científico não é o de buscar causas iniciais e finais, Comte não deixa de admitir a explicação causal na medida em
que está preocupado com as "relações normais de sucessão e
similitude". Quanto ao método e sua relação com a teoria, Comte firma
assim suas bases particulares do empiricismo:
[...] de um lado toda teoria
positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, [mas] é
inegavelmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso
espírito precisa duma teoria qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os
vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas nos seria impossível
combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto,
mas seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos
passariam despercebidos aos nossos olhos (idem).
Já com respeito à relação entre ciência e o
método (geral) positivo, e à importância do estudo deste último, talvez possa
resumir sua concepção com as citações seguintes:
Numa ciência qualquer, tudo o que
é simplesmente conjetural é apenas mais ou menos provável, não está aí seu
domínio essencial; tudo o que é positivo, isto é, fundado em fatos bem constatados,
é certo [...]. [À] impossibilidade de conhecer o método positivo separadamente
de seu emprego, devemos acrescentar [...] que não podemos fazer dele uma idéia
nítida e exata a não ser estudando, sucessivamente e na ordem conveniente, sua
aplicação a todas as diversas classes principais de fenômenos naturais.
Porquanto, embora o método seja essencialmente o mesmo em todas, cada ciência
desenvolve especialmente este ou aquele de seus procedimentos característicos,
cuja influência, muito pouco pronunciada em outras ciências, passaria
despercebida. Assim, por exemplo, em certos ramos da filosofia, é a observação
propriamente dita; em outros, é a experiência, e esta ou aquela natureza de
experiências, que constituem o principal meio de exploração (op. cit.:36-7).
A partir de tais
princípios, chega-se ao segundo tema básico do pensamento Comteano, onde ele
desenvolve sua formulação e classificação racional das ciências positivas
fundamentais.
Inicialmente, Comte
parte da premissa de que toda atividade humana é de natureza especulativa ou
ativa. Daí resulta que a primeira divisão mais geral de nossos conhecimentos é
teórica ou especulativa, de um lado, e prática ou empírica, de outro. Quanto à
natureza das ciências naturais, tais conhecimentos devem ser distinguidos a
partir dos tipos de fenômenos. Essa distinção coloca de um lado, as ciências
abstratas + mais gerais, que objetivam a descoberta de leis + e de outro, as concretas + particulares, descritivas, que se destinam à aplicação de leis.
Assim,
Comte chega à idéia de que existem quatro categorias principais de fenômenos
naturais, os astronômicos, os físicos, os químicos e os fisiológicos. Ele
aponta ainda para a necessidade de desmembrar os fenômenos sociais dos
fisiológicos, apesar da física social
ainda não ter entrado no domínio da filosofia positiva. Com efeito, às
categorias de fenômenos naturais apontados anteriormente, corresponderiam as
ciências fundamentais, que Comte denomina de abstratas. Elas seriam: a
astronomia, a física, a química e a fisiologia ou biologia. (No final da
segunda lição de seu Curso de Filosofia
Positiva, ele inclui a matemática, como a primeira, e a sociologia, como a última, ali ainda
denominada de física social.) Tal
classificação baseia-se em uma ordem lógica e cronológica, onde se admite a
gradação do mais simples e abstrato para o mais complexo e concreto. Assim,
enquanto, de uma extremidade, a astronomia observa os fenômenos mais gerais,
simples, abstratos, afastados do homem, da outra, a sociologia volta-se para os
mais particulares, mais complexos, concretos e próximos ao ser humano.
O
terceiro e último tema da sociologia de Comte está relacionado ao caráter
reorganizador da sociedade e das instituições, pois ele via na filosofia
positiva um instrumento para que o homem fosse reeducado para reorganizar as
estruturas políticas e sociais visando à ordem (estática) e ao progresso
(dinâmica) sociais.
Trecho do texto: POSITIVISMO, POSITIVISMOS - DA TRADIÇÃO FRANCESA AO POSITIVISMO INSTRUMENTAL
de Túlio Velho Barreto.