Uma das obras mais fundamentais da filosofia chama-se
Discurso do Método e traz o seguinte subtítulo: “para bem conduzir sua razão e
buscar a verdade nas ciências”. Será que não é pretensão demais para um texto
escrito de forma autobiográfica? A trajetória do texto e o poder que exerceu
sobre a tradição posterior revelam que não. O Discurso do Método é uma obra
destinada, inicialmente, a servir de prefácio a três ensaios do filósofo e
matemático Descartes: a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria. Os dois primeiros
só interessam hoje aos historiadores do pensamento cartesiano. Já o terceiro
teve ampla divulgação entre os matemáticos, por razões que veremos mais tarde.
Quanto ao Discurso, dividido em seis partes, apesar de Descartes dizer que seu
propósito era apenas “(...) mostrar de que maneira ele se esforçou para bem
conduzir sua razão.” (Descartes, 1962) frase que devemos atribuir à modéstia de
Descartes, na verdade a obra expõe com clareza uma série de argumentos que
permitem à filosofia fundamentar todo o edifício do saber.
Na segunda parte do Discurso, Descartes enumera quatro
preceitos que devem conduzir a ciência. Acompanhemos o texto do filósofo:
O primeiro era o de jamais acolher
alguma coisa como verdadeira que
eu não conhecesse evidentemente como
tal; isto é, de evitar cuidadosamente
a precipitação e a prevenção, e de
nada incluir em meus juízos que
não se apresentasse tão clara e tão
distintamente a meu espírito, que eu
não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo
em dúvida. O segundo, o de dividir
cada uma das dificuldades que eu
examinasse em tantas parcelas quantas
possíveis e quantas necessárias fossem
para melhor resolvê-las. O terceiro,
o de conduzir por ordem meus
pensamentos, começando pelos objetos
mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir, pouco, como por degraus,
até o conhecimento dos mais compostos,
e supondo mesmo uma
ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros. E o último,
o de fazer em toda parte enumerações
tão completas e revisões tão
gerais,
que eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1962)
A primeira regra, também conhecida por “regra da
evidência”, sintetiza um ponto muito importante na filosofia cartesiana.
Descartes entende que a razão é uma capacidade que o homem possui para examinar
os dados que os sentidos captam. Nisto ele não se distingue de filósofos
anteriores. Mas, Descartes também pensa que a verdade e a certeza são condições
sem as quais um homem não pode dizer que possui conhecimento. O filósofo foi educado
em La Flèche, uma escola jesuíta que reunia o que havia de melhor em termos de
Metafísica e Teologia do século XVII. Por meio dessa instrução, Descartes pôde exercitar-se
durante anos em investigações metafísicas oriundas da Idade Média cujas teses e
argumentos são, em sua maior parte, raciocínios prováveis. É contra esse tipo
de procedimento que o método cartesiano ganha força. Para Descartes é
importante rejeitar todos os juízos, demonstrações e dados que não possam ser
tidos como verdadeiros e indubitáveis. Quando Descartes recomenda a certeza ele
pensa naquela “luz natural” que cada homem possui, permitindo-lhe “intuir” (no
sentido preciso de ver) a verdade de cada coisa. Veja como o filósofo delineia
o método que orienta essa “visão mental”:
Todo método consiste inteiramente em
ordenar e em agrupar os objetos
nos quais deveremos concentrar o nosso
poder mental se pretendermos
descobrir alguma verdade. Seguiremos
este método com exatidão se
desse início reduzirmos as questões
complicadas e obscuras, substituindo-
as, passo a passo, por outras mais
simples e depois, começando pela
intuição das mais simples de todas,
tentarmos conhecer todas as outras,
através
dos mesmos processos. (in:
COTTINGHAM, 1989)
Você pode aplicar esse método no estudo de qualquer
coisa, mas não deixe de atentar para o seguinte: a mensagem de Descartes é que sua
razão segue um passo que vai do simples ao complexo por meio de graus de
entendimento na matéria. Além disso, o trecho acima revela que o entendimento é
uma espécie de visão mental, ou intuição, termo redefinido por Descartes e cujo
significado não pode ser confundido com a tradição aristotélica. Em Descartes
intuição é uma capacidade análoga à faculdade da visão. A clareza que o
entendimento busca é uma capacidade de ver mentalmente as estruturas e
qualidades dos corpos existentes, do mesmo modo que a projeção de mais luz
sobre um corpo permite uma visão mais detalhada e precisa desse corpo.
Segundo Granger, o espírito do cartesianismo é o espírito
da matemática:
Dividir a dificuldade, ir do simples
ao complexo, efetuar enumerações
completas, é o que observa
rigorosamente o geômetra quando analisa um
problema em suas incógnitas,
estabelece e resolve suas equações. A originalidade
de Descartes consiste em ter
determinado, de forma por assim dizer
canônica, essas regras de manipulação
que somente se esboçam em
seus contemporâneos na sua aplicação
particular às grandezas, e de havê-las
ao mesmo tempo oposto e substituído à
Lógica da Escola, na qual vê
apenas
um instrumento de Retórica, inutilmente sofisticado. (DESCARTES, 1962)
Como se vê, o método cartesiano é uma projeção de
princípios e regras que orientam o raciocínio matemático-geométrico. A terceira
e quarta regras, respectivamente, apenas confirmam um procedimento de resolução
de problemas na geometria: as linhas e as figuras simples estão contidas nas
compostas, etc. Vale ressaltar uma caracterização do conhecimento em Descartes que
podemos chamar de “unitária”. Talvez sem o saber, Descartes retoma a opinião de
Platão, para quem é possível identificar uma natureza comum do conhecimento, e
se põe contra Aristóteles nesse ponto, o qual defendia a necessidade de
distintas metodologias e perfis diferentes para cada ramo do saber.
(Texto extraído do
Livro de Filosofia da Secretária de Educação do Paraná)
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